Escritos Contables y de Administración, vol. 13, n.° 2, 2022, págs. 4 a 26

issn 1853-2055 (en línea)

O conflito distributivo contábil: o valor justo e a justiça distributiva na percepção de Adam Smith1

Accounting distributive conflict: fair value and distributive justice as perceived by Adam Smith

luiz Marcelo Cabral2

Ernani Ott3

Clovis Antônio Kronbauer4

Rafael Ramon Fonsêca Rodrigues5

https://doi.org/10.52292/j.eca.2022.3330

Fecha recepción: 09/05/2022

Fecha aceptación: 24/08/2022

Resumo

O objetivo deste ensaio teórico foi dar continuidade à reflexão sobre uma definição aderente a contabilidade, baseado no artigo “Uma reflexão sobre a contabilidade: caminhando por trilhas da ‘teoria tradicional e teoria crítica’” dos Professores Sérgio de Iudícibus, José Francisco Ribeiro Filho, Jorge Expedito de Gusmão Lopes e Marcleide Maria Macêdo Pederneiras (2011). A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a dedutiva com embasamento na Teoria da Justiça e seus pensadores, especialmente Adam Smith. Concluiu-se que a contabilidade é uma ciência social que serve para mediar o conflito distributivo na sociedade, mediante o reconhecimento, mensuração e evidenciação dos fenômenos que afetam o patrimônio das entidades e utiliza como padrão de justiça o valor justo, principal marcador justo no processo de troca de bens e satisfaça as necessidades dos utilizadores, dirimindo o conflito distributivo.

Palavras-chave: teoria crítica, conflito distributivo, valor justo.

Abstract

The aim of this theoretical essay was to continue the reflection on a definition related to accounting, based on the article “A reflection on accounting: walking along the paths of ‘traditional theory and critical theory’” by Professors Sérgio de Iudícibus, José Francisco Ribeiro Filho, Jorge Expedito de Gusmão Lopes and Marcleide Maria Macêdo Pederneiras. The methodology used in this research was deductive based on the Theory of Justice and its thinkers, especially Adam Smith. It was concluded that accounting is a social science that serves to mediate distributive conflict in society, through the recognition, measurement and disclosure of phenomena affecting the assets of entities, and uses fair value as a standard of justice, the main fair marker in the process of exchange of goods to satisfy the needs of users, solving the distributive conflict.

Keywords: critical theory, distributive conflict, fair value.

JEL: Y20, M49, G12.

1. Introdução

No artigo “Uma reflexão sobre a contabilidade: caminhando por trilhas da ‘teoria tradicional e teoria crítica’”, publicado na Revista Base da UNISINOS em 2011, os professores Sérgio de Iudícibus, José Francisco Ribeiro Filho, Jorge Expedito de Gusmão Lopes e Marcleide Maria Macêdo Pederneiras sugerem uma definição mais reflexiva e expansiva da Contabilidade dentro da Accounting Critical Perpective (‘Perspectiva Crítica Contábil’), na tentativa de resgatar as bases epistemológicas fundamentais da Contabilidade enquanto ciência social.

Como provocação inicial, tem-se a seguinte verbalização:

Perquirir em torno de uma possível razão que seja, em um primeiro momento, compreensível e, em seguida, útil para justificar a existência, a preservação e a continuidade da contabilidade enquanto acúmulo histórico de um conhecimento específico, parece se constituir em espaço mais adequadamente definido no campo da especulação (Iudícibus et al., 2011, p. 275).

Essa busca constante e contínua da preservação da Contabilidade enquanto ciência social, de sua existência e justificação no campo vasto das ciências que se consolidam, só se dá no acúmulo histórico de um conhecimento específico.

Como ensina Iudícibus (2012, p. 7), “[…] o lugar melhor para a teoria é exatamente esse, ou seja, o de pesquisar na fronteira do conhecimento contábil, além de analisar criticamente as práticas profissionais vigentes”.

Hodiernamente, o valor justo contábil é uma dessas fronteiras do conhecimento contábil e uma das bases de mensuração contábil mais em voga nos livros contábeis e nos artigos renomados. Não apenas na aplicação prática (valor de mercado), mas no sentido epistemológico-contábil, arcabouço epistemológico de mensuração da contabilidade.

Ribeiro Filho et al. (2009) ensinam que a epistemologia para uma teoria é a base pela qual se pode obter conhecimento na área daquela teoria a partir de um estudo crítico de princípios, hipóteses e resultados constituídos. Assim, a epistemologia tomou, segundo os autores, uma nova dimensão, no sentido que é a busca de um processo, quais são os seus princípios, como começa e como vai se estruturando.

E por que fazer isso? Porque a ciência não avança só adicionando novas teorias, entendimentos e aplicações práticas, ela faz isso também mediante a reflexão crítica sobre ela mesma, como o conhecimento nela produzido. Daí a importância da epistemologia (Ribeiro Filho et al., 2009, p. 44).

A contabilidade, por seu turno, passa por alterações significativas nas últimas décadas e uma das características qualitativas mais evidentes é a representação fidedigna, bem como a essência sobre a forma, ou seja, a representação pela substância econômica em detrimento à forma legal. Assim, a essência sobre a forma continua, na realidade, sendo uma bandeira insubstituível nas normas do International Accounting Standards Board (IASB).

A Estrutura Conceitual Contábil (Conselho Federal de Contabilidade [CFC], 2019), no seu item 4.6, trata bem do assunto, ou seja, ao se avaliar se um item se enquadra na definição de ativo, passivo ou patrimônio líquido, deve-se atentar para a sua essência subjacente e realidade econômica e não apenas para sua forma legal.

Mister se faz uma análise crítica das definições insertas na Norma Brasileira de Contabilidade – General (NBC TG) 46 (CFC, 2017) e demais normativos correlacionados e examinar o conceito de justiça emanado de vários filósofos de várias épocas diferentes e o próprio conceito implementado pela Lei no 6.404 (1976) e outros normativos nacionais e internacionais, com o fito de mostrar se esse conceito de valor justo contábil responde a sua aplicação normativa, não só no mundo conceitual, mas no mundo real.

As alterações a Lei 6.404 (1976) trouxe o valor justo no seu corpo normativo, consolidando legalmente o valor justo, com a inclusão no art. 183, § ١o,

Para efeitos do disposto neste artigo, considera-se valor justo:

a) das matérias-primas e dos bens em almoxarifado, o preço pelo qual possam ser repostos, mediante compra no mercado;

b) dos bens ou direitos destinados à venda, o preço líquido de realização mediante venda no mercado, deduzidos os impostos e demais despesas necessárias para a venda, e a margem de lucro;

c) dos investimentos, o valor líquido pelo qual possam ser alienados a terceiros.

d) dos instrumentos financeiros, o valor que pode se obter em um mercado ativo, decorrente de transação não compulsória realizada entre partes independentes; e, na ausência de um mercado ativo para um determinado instrumento financeiro:

1) o valor que se pode obter em um mercado ativo com a negociação de outro instrumento financeiro de natureza, prazo e risco similares;

2) o valor presente líquido dos fluxos de caixa futuros para instrumentos financeiros de natureza, prazo e risco similares; ou

3) o valor obtido por meio de modelos matemático-estatísticos de precificação de instrumentos financeiros. 

Para dirimir tal problema, é necessário criar um arcabouço teórico contábil-filosófico unido com as diversas versões clássicas da ideia de justiça e os desenvolvimentos do paradigma contemporâneo, essa é a essência (Maffettone e Veca, 2005). Mesmo quando a teoria da justiça é uma parte da teoria da escolha racional, o conceito de racionalidade deve ser interpretado da maneira mais restrita possível, aquela corrente na teoria econômica que corresponde ao uso dos meios mais eficazes em vista de determinados fins (Rawls, 2008).

Desse modo, discutir o conceito de valor justo inserto na Lei no 6.404 (1976) e NBC TG 46 (CFC, 2017), permeado pelo conceito de justiça, traz à baila a essência e o fundamento em princípios de justiça que conotam uma condição pela qual uma divisão adequada dos benefícios deve ser realizada de acordo com princípios aceitáveis para todas as partes.

A inserção da definição de valor justo contábil na Lei no 6.404 (1976) tem sustentação diante das teorias desenvolvidas pela Teoria Contábil, especialmente, quando se estuda a essência sobre a forma. “De certa forma, o enforcement do valor justo dá um enorme salto sobre as formas tradicionais de avaliação, passando por cima das alternativas mais conhecidas, a fim de aportar no outro lado do rio” (Iudícibus e Martins, 2007, p. 10).

A contribuição, eminentemente teórica, dá-se no campo da Mensuração, com foco no valor justo e sua relação com a Contabilidade. Pretende-se, assim, em uma perspectiva crítica e epistemológica, complementar o artigo com esse “acúmulo histórico” e o entendimento do valor justo na esteira da Teoria da Justiça, segundo a visão de Adam Smith.

2. Uma reflexão sobre a contabilidade: caminhando por trilhas da “teoria tradicional e teoria crítica”

O artigo “Uma reflexão sobre a contabilidade: caminhando por trilhas da ‘teoria tradicional e teoria crítica’” (2011), de Iudícibus et al. (2011), apresentou um ensaio teórico que utilizou uma abordagem dedutiva e objetivou estimular um debate crítico sobre a responsabilidade social da contabilidade. Foram três os motivadores do artigo:

Antes de iniciar as conexões entre Horkheimer, Habermas e Honneth com a Contabilidade, Iudícibus et al. (2011), ainda na introdução, fazem três perguntas fundamentais:

No sentido de encontrar respostas para essas perguntas, os autores trouxeram à baila definições já consolidadas por órgãos e autores. Tais definições tentam captar o que representa a contabilidade, no entanto, segundo os autores qual seria, então, “o inconveniente cognitivo de se adotar uma definição para a contabilidade, declarada como ciência social, que coloca como seu objeto o patrimônio das entidades?” (Iudícibus et al., 2011, p. 275).

Iudícibus et al. (2011, p. 276) afirmam que,

Em resposta, por enquanto, pensa-se que uma ciência social para se afirmar e consolidar como tal, não deveria colocar como seu objeto de estudo algo que esteja dentro dela mesma, do seu campo de observação e estudo específico, no caso o patrimônio das entidades, pois poderia sugerir que a contabilidade teria um fim nela mesma, o que inviabilizaria a sua perspectiva de autonomia científica.

Após essas repostas surge outra indagação:

Qual a importância, de fato, de expressar a contabilidade a partir de um objeto ancorado para fora de seu campo específico de atuação, do manuseio de seus conceitos, da aplicação pretensamente neutra de suas técnicas e da exposição de suas regras? (Iudícibus et al., 2011, p. 277).

Os autores elaboram a pergunta e a respondem com o artigo de Lippman e Wilson (2007), pesquisadores de história contábil, que fizeram uma análise dessa atuação dos contadores sob o seguinte título: The culpability of accounting in perpetuating the Holocaust” (‘A culpabilidade da contabilidade em perpetuar o Holocausto’).

Este artigo retrata o uso espúrio da contabilidade, com a finalidade de retratar o uso para fins detrativos dos judeus, constando, inclusive, baseada em documentos oficiais uma Demonstração de Resultado de Exercício que relata o tempo de vida de um judeu em péssimas condições e o quanto é gerado de resultado para os nazistas (Iudícibus et al., 2011).

Para quem lê o artigo pela primeira vez, parece um texto desconexo, mas fica demonstrado que a contabilidade pode servir a fins obscuros e desumanos, dependendo de quem a utiliza. Dessa forma, para sanar a indagação “para que serve?”, os autores levantam dimensões críticas e sociológicas como uma das alternativas de dirimir e responder as questões levantadas no início do texto.

Na tentativa de dirimir a indagação “para que serve?”, os autores utilizam a teoria crítica, iniciada com o legado de Max Horkheimer (1895-1973) em seu artigo/manifesto de 1937 intitulado Teoria tradicional e teoria crítica (1980). A base da teoria crítica formulada inicialmente por Horkheimer, intenta trazer para o mesmo plano as formulações teóricas e as observações empíricas, discutindo-as na perspectiva da ação libertadora e da promoção do ser humano, imbricando a observação, a descrição, a explicação e a transformação dos fenômenos, voltados para a promoção da vida em sociedade. Trata-se, sem dúvida, de moldar “uma ciência social útil”, no sentido de que seja indutora da melhoria das condições de vida das pessoas.

Os autores, muito sabiamente, fazem a conexão crítica da contabilidade, no sentido de que a contabilidade deve ter uma ação libertadora e promover o ser humano, respondendo assim a primeira indagação, imbricando a observação, a descrição, a explicação e a transformação dos fenômenos, voltados para a promoção da vida em sociedade e a teoria da comunicação de Habermas (2002), com sua Racionalidade e comunicação.

Habermas (2002) coloca os principais pontos ou pretensões de validade para um processo comunicacional efetivo:

(a) enunciar de uma forma inteligível;

(b) oferecer ao ouvinte algo que possa compreender;

(c) fazer-se a si próprio, desta forma, entender;

(d) atingir seu objetivo de compreensão junto ao outro.

Habermas (2002, p. 12, como citado em Iudícibus et al., 2011, p. 281) ensina que em todo esse processo o falante deve escolher uma forma de expressão inteligível (verständlich), de forma que tanto ele como o ouvinte possam compreender-se um ao outro. Afirma, ainda, que um ato de fala será bem-sucedido, na medida em que seja capaz de criar uma relação interpessoal, quando o processo for:

(i) compreensível e aceitável;

(ii) aceito pelo ouvinte.

Os autores interligam a teoria crítica à Contabilidade como ciência social, que promove o bem-estar e a teoria da comunicação de Jürgen Habermas, e com isso sustentam a máxima da Contabilidade como um processo de comunicação ou linguagem dos negócios. O arremate final é com Axel Honneth, em sua tese intitulada Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003). Axel tem por base dois princípios basilares, como exposto na tabela 1.

Tabela 1. Princípios Basilares de Axel Honneth

Autopreservação: uma vez que dois sujeitos mantêm-se reciprocamente estranhos e impenetráveis no que concerne aos propósitos de sua ação, cada um é forçado a ampliar prospectivamente seu potencial de poder a fim de evitar também no futuro o ataque possível do outro.

Luta pelo reconhecimento: o ser humano é guiado por um conjunto de juízos que delineiam sua personalidade, sua importância, enquanto sujeito pensante, no contexto da vida em sociedade. Os embates, portanto, entre dois indivíduos se contemplando em silêncio por viverem em desconfiança cedem lugar a um diálogo profícuo, em termos Habermasianos, onde o principal objetivo é se reconhecer no outro, perceber a retórica de sua aceitação pelo outro, abrindo espaço para o autoconhecimento e o reconhecimento mútuo.

Fonte: baseado em Iudícibus et al. (2011).

Para Honneth (como citado em Iudícibus et al., 2011) o desenvolvimento científico, por um lado, e o aperfeiçoamento contínuo de suas técnicas, devem ser conjugados com o compromisso de um processo civilizatório fundado na ética, na justiça social e no bem comum. Nesse ponto, os autores constroem uma Ciência Contábil que promove o ser humano, com o compromisso de um processo civilizatório, fundado na ética, na justiça social e no bem comum.

Iudícibus et al. (2011, p. 283), ainda, trazem à baila a teoria contábil positiva (positive accounting theory), numa tentativa de inscrevê-la no rol das ciências naturais.

Ao analisar bancos de dados com métricas contábeis de receitas, despesas, lucros etc., utilizando modelos matemáticos e estatísticos, descreve os comportamentos das variáveis, distanciando-as de outros fenômenos comportamentais, humanos, sociais, de preferências, sugerindo certa neutralidade desses fenômenos em relação ao drama humano da vida e dos embates na arena social.

Foram decisivos na introdução da pesquisa positiva em contabilidade, os trabalhos de Ball e Brown (1968) e Beaver (1968), baseados na metodologia da Escola de Chicago e designados por estudos de associação (Almeida e Almeida, 2016).

A teoria positiva da contabilidade tem como objetivo extrapolar um conjunto de regras de comportamento empiricamente validadas e suscetíveis de apoiar uma teoria geral de construção das demonstrações contábeis das empresas (Almeida e Almeida, 2016).

Por fim, após as várias análises teóricas da Contabilidade, tanto no sentido sócio filosófico, humanização contábil, quanto matemático-estatístico, cientificismo contábil, os autores chegam a seguinte definição da contabilidade, construídas através das perguntas iniciais:

A Contabilidade é uma Ciência Social cujo objeto de estudo é a mediação (arbitramento) do conflito distributivo, mediante o reconhecimento, mensuração e evidenciação dos fenômenos que afetam o patrimônio das entidades, sob a perspectiva de uma atuação ética, pautada no interesse público e na dignidade do ser humano (Iudícibus et al., 2011, p. 285).

A contribuição do supramencionado artigo, no campo teórico, dá-se na expansão do objeto de estudo da Ciência Contábil, inserindo a mediação do conflito distributivo como objeto principal da Contabilidade, a partir da aplicação técnica do reconhecimento, mensuração e evidenciação dos fenômenos que acometem o patrimônio das entidades.

Com a mediação do conflito distributivo, a Mensuração pelo Valor Justo torna-se o principal foco de Avaliação Contábil, uma teoria da troca justa, os contratos são livremente negociados baseados na troca e permuta no Mercado Ativo dos Bens, e, não ausência desse, Mercados Alternativos ou modelos estatísticos-matemáticos.

3. A Mão Invisível e o Valor Justo na Percepção de Adam Smith

A definição ora trazida é aderente ao próprio percurso histórico da contabilidade, que sempre esteve a serviço da evolução das sociedades e da própria civilização humana, bem como se projeta para o futuro, pois é nele que se vislumbra um maior aperfeiçoamento da humanidade (Iudícibus et al., 2011).

Nessa toada, a Ciência Contábil deve propor, então, marcadores justos para medir os bens e os direitos envolvidos nessas inter-relações, respondendo às necessidades dos vários participantes envolvidos nessa troca de bens sem favorecimento. Essa é, pois, a missão da contabilidade.

Para saber se tais definições respondem ao conceito de valor justo em sua essência, é necessário criar um arcabouço teórico contábil-filosófico unido a diversas versões clássicas da ideia de justiça e aos desenvolvimentos do paradigma contemporâneo (Maffettone e Veca, 2005).

Talvez, o paradigma contemporâneo contábil seja encontrar um conceito de justiça que melhor se adeque às necessidades de mensuração e, ao mesmo tempo, tente mediar o conflito distributivo, tendo como parâmetro os valores éticos e sociais, os pressupostos de verdade e equidade e a justiça na distribuição da riqueza (Ribeiro Filho et al., 2009).

Muitos pensadores da humanidade discutiram justiça e valor justo, dentre eles se destaca Aristóteles, que discutiu bastante conceitos como valor e justiça. Esse filósofo grego estava preocupado com a forma de alcançar uma sociedade justa, o que ao mesmo tempo o levou a tratar as questões econômicas tangencialmente quando se relacionavam com a justiça (Sánchez-Serna e Arias-Bello, 2012).

A justiça, portanto, no sentido de obediência à lei – à boa lei, frise-se – é co-extensiva à virtude. […] Justiça é uma palavra que designa o aspecto exterior da virtude, comportamental, ao passo que a virtude é uma disposição presente no agente para escolher um comportamento equidistante dos extremos (Macedo Jr., 2008, p. 138).

Aristóteles (2008), segundo Sánchez-Serna e Arias-Bello (2012, p. 437), foi um dos pioneiros nas discussões sobre valor e preço, na perspectiva do valor de uso e do valor de troca, fazendo menção ao fato de que,

cada propriedade tem dois usos que pertencem a ela essencialmente, embora não seja a mesma maneira: aquele é especial para a coisa, o outro não é. Um sapato pode servir ao mesmo tempo para calçar o pé ou utilizado para a troca. Pelo menos esse uso duplo pode ser feito. Quem troca um sapato por dinheiro ou por comida com outra necessidade dele, ele usa esse sapato bem como tal, mas não de acordo com seu próprio uso, porque tinha sido feito para a troca (Aristóteles, 2008, p. 527; Sánchez-Serna e Arias-Bello, 2012, p. 437).

Observa-se que Aristóteles deixa claro a diferenciação entre o valor de uso e o valor de troca, sem falar em valor ou preço, então é importante entender o contexto, já que sua ênfase está nas diferentes maneiras de adquirir bens (Sánchez-Serna e Arias-Bello, 2012).

Além da distinção do valor de uso e valor de troca, Aristóteles (2008, p. 47) insere o meio termo ou justo meio (mesótes).

Em tudo que é contínuo e divisível pode-se tirar uma parte maior, menor ou igual, e isso tanto em termos da própria coisa, quanto em relação a nós; e o igual é um meio-termo entre o excesso e a falta. Por “meio-termo ao objeto” quero significar aquilo que é equidistante em relação aos extremos, e que é o único e o mesmo para todos os homens; e por “meio termo em relação a nós” quero dizer aquilo que não é nem demasiado nem muito pouco, e isto não é o único e o mesmo para todos.

A justiça, compreendida em sua categorização genérica, é uma virtude (areté) e, como toda virtude, qual a coragem, a temperatura, a liberalidade, a magnificência…, é um justo meio (mesótes). Não se trata de uma simples aplicação de um raciocínio algébrico para a definição e a localização da virtude (um meio algébrico com relação a dois polos opostos), mas da situação desta em meio a dois outros extremos equidistantes com relação à posição mediana, um primeiro por excesso e um segundo por defeito (Bittar e Almeida, 2007).

A junção do meio justo e valor de troca pode ser considerada uma prévia do valor justo contábil, sendo um conceito moral e onde os interessados em trocar bens, monetários ou não, usam o meio termo ou justo meio, para satisfazer em uma troca justa suas necessidades primárias ou supérfluas. Porém, “a palavra “justo” próxima ao valor de mercado é atribuída ao próprio entendimento de Smith sobre o que constitui justiça distributiva” (Donleavy, 2019, p. 253).

O valor justo foi, portanto, uma ideia nascida no Iluminismo. O valor justo como um termo de aprovação moral, em vez de uma avaliação técnica, foi associado à crença de que mercados competitivos alocam recursos de maneira ideal. Essa ideia foi criada no Iluminismo e o fertilizante que acelerava seu crescimento era a metáfora da Mão Invisível (Donleavy, 2019, p. 254).

Adam Smith aplicou a física Newtoniana à atividade econômica, implicando um sistema de busca de equilíbrio, desenvolvendo a economia de mercados competitivos, de acordo com as ideias do laissez-faire e da mão invisível.

Donleavy (2019, p. 256) explica que

o direito contratual desenvolveu-se em um contexto da noção de equidade do direito comum, segundo a qual o Tribunal de Chancelaria impediria que ocorresse injustiça grave em casos civis, impondo ideias de justiça, negociação livre, simetria de informações e a prevenção de enriquecimento sem causa nas vendas e compras comerciais, realizado de forma privada ou em mercados públicos. Evoluiu lentamente a ideia da transação justa e do mercado justo. Um marco crucial nesse desenvolvimento foi o caso do Conde de Chesterfield v Janssen (1750). O Lord Chanceler da Inglaterra e do País de Gales, Lord Hardwick, acrescentou em sua relação decidendi algumas palavras que prepararam o cenário para a transição para uma noção de valor justo legalmente aplicável.

Turgot criou uma teoria da troca justa com base em uma abordagem contratualista. Um contratualista é aquele que acredita que há virtude e justiça nos contratos livremente negociados, sem a necessidade de considerar quaisquer noções abstratas de bem-estar geral. A teoria dos contratos e a livre negociação são baseadas na “tendência de trocar, permutar e cambiar uma coisa por outra” (Smith, 2018, p. 21).

Pelo fato de ser por acordos, trocas ou compras que se obtém uns dos outros a maior parte daquelas necessidades mútuas que se espera, tem-se a mesma disposição de permuta que originalmente causa a divisão do trabalho (Smith, 2018). Sem a disposição de permutar, trocar ou cambiar, aconteceria que o esforço para obter tudo “aquilo que é necessário e conveniente na vida que desejam” (Smith, 2018, p. 23) seria obtido pelo trabalho individual de cada pessoa.

Turgot (como citado en Donleavy, 2019, p. 257) ensina que,

em uma troca econômica, é necessário que cada parte esteja convencida da qualidade e quantidade de tudo que é trocado. Nesse tipo de acordo, é natural que todos desejem receber o máximo que puderem e dar o mínimo; e ambos sendo igualmente donos do que precisam trocar, está no seio de um homem equilibrar o apego que ele tem ao que dá, com o desejo que sente de possuir aquilo que está disposto a receber e, consequentemente, consertar a quantidade de cada uma das coisas trocadas.

Smith (2018) chama tal sociedade de uma “sociedade devidamente comercial”, onde todos vivem da troca ou se tornam de algum modo comerciantes.

A inserção da palavra valor é adicionada por Smith (2018) quando faz a seguinte indagação: Que regras os homens seguem naturalmente ao trocar seus produtos por dinheiro ou outros produtos? Assim, ele responde:

Essas regras determinam o que podemos chamar de valor relativo ou de troca das mercadorias. A palavra valor, devemos observar, tem dois significados diferentes e, às vezes, expressa a utilidade de um determinado objeto e, outras vezes, o poder de compra de outros produtos cuja posse daquele objeto possibilita. O primeiro pode ser chamado “valor de uso”, o outro de “valor de troca”. As coisas com maior valor de uso quase sempre não possuem pouco ou nenhum valor de troca. Ao contrário, aqueles com maior valor de troca geralmente possuem pouco ou nenhum valor de uso. Nada pode ser mais útil do que a água, no entanto, com ela não há o que comprar, assim como também quase nada pode ser trocado por ela. Um diamante, ao contrário, tem pouquíssimo valor de uso, mas uma enorme variedade de outros produtos podem ser adquirida em troca de seu valor (Smith, 2018, p. 33).

Smith (2018) faz a distinção entre o valor de uso e o valor de troca, diferencia os significados e a utilidade para um determinado objeto e seu poder de compra. O valor de qualquer bem, portanto, para a pessoa que o possui, é aquele que não tem a intenção de usar ou consumi-lo ele próprio, mas de trocá-lo por outros produtos, é igual à quantidade de trabalho que ele possibilita comprar ou controlar. O trabalho, portanto, é a medida real do valor de troca de todas as mercadorias.

O trabalho foi o primeiro preço, a moeda original de troca pagava por todas as coisas. Não era com ouro nem prata, mas sim pelo trabalho, que toda a riqueza do mundo era originalmente adquirida, e seu valor para aqueles que o possuem e que desejam trocar por outras produções, é exatamente igual à quantidade de trabalho que lhes possibilita adquirir ou controlar (Smith, 2018).

Smith (2018) se preocupou com valor justo de troca e associou o trabalho como o primeiro valor das coisas, e com a inserção da moeda houve a facilitação das trocas, pela homogeneização e simplificação da troca. Além disso, a mão invisível surge para defender os mercados, já que é o mecanismo ideal de alocação de recursos.

Como ensina Smith (2018, p. 36),

o valor de troca de tudo deve sempre ser exatamente igual à extensão desse poder que traz ao seu dono. Mas, embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todos os bens, não é por ele que seu valor é geralmente calculado. É muito difícil estimar a proporção entre duas quantidades diferentes de trabalho. O tempo gasto em dois diferentes tipos de trabalho nem sempre será o único fator a determinar essa proporção. Os diferentes graus de dificuldade enfrentada, e da tática exercida, deverão também ser levados em conta. Pode haver mais trabalho em uma hora de trabalho pesado do que em duas horas de uma atividade simples; ou em uma hora de dedicação a um trabalho que tenha levado dez anos para ser aprendido do que a produção de um mês de uma função óbvia e comum. Mas não é fácil encontrar uma medida exata da dificuldade ou da engenhosidade. Ao trocar algo, portanto, as diferentes produções de diferentes tipos de trabalho, certas concessões são admitidas de ambos os lados. Elas são então ajustadas não por uma medida exata, mas pelo regateio e barganha do mercado, de acordo com aquele tipo de equiparação grosseira que, embora não seja precisa, basta para dar continuidade ao negócio da vida comum.

O ajustamento da não exatidão se dá “pelo regateio e barganha do mercado”, entretanto, conforme (Smith, 2018, p. 36) “quando a barganha se encerra e o dinheiro se torna o instrumento comum de comércio, todo bem particular é mais frequentemente trocado por dinheiro do que por qualquer outra mercadoria”.

Nesse ponto, Smith (2018) leciona que o trabalho é o único e real padrão de todos os bens, representando o seu preço real, enquanto o dinheiro é seu preço nominal. Nesse diapasão, o preço real é sempre do mesmo valor, mas, por causa das variações no valor do ouro e da prata, o mesmo preço nominal é, às vezes, de valores muito diversos.

Smith (2018, p. 51) dispõe:

Como o preço ou valor de troca de qualquer mercadoria, de modo isolado, refere-se a algumas ou todas essas três partes, todos os produtos que compõem a produção anual do trabalho de todo o país, de maneira complexa, devem se referir às mesmas três partes, e ser parcelados entre os diferentes habitantes do país, seja na forma de salários de seus trabalhos, nos lucros de seus capitais ou na renda de suas terras. O total daquilo que é anualmente coletado ou produzido pelo trabalho de todas as sociedades, ou o que vem a ser o mesmo, seu preço total, é dessa forma originalmente distribuído entre alguns de seus diferentes membros. Os salários, o lucro e a renda são as três fontes originais de todos os rendimentos, bem como de todos os valores de troca. Todos os outros rendimentos derivam então de uma ou outra dessas partes.

O preço real, pelo qual toda mercadoria é geralmente vendida, é chamado de seu preço de mercado. Ele pode estar acima, abaixo ou ser exatamente o mesmo que seu preço natural (Smith, 2018). O preço de mercado de cada mercadoria em particular é regulado pela proporção entre a quantidade que de fato chega ao mercado e a demanda daqueles que estão dispostos a pagar o preço natural do produto ou o valor total da renda, trabalho e lucro, que deve ser pago para que ele chegue onde é esperado. Essas pessoas podem ser chamadas de demanda efetiva, pois esta pode ser suficiente para efetuar o transporte da mercadoria até o mercado (Smith, 2018).

O valor justo começa a tomar forma, conhecido como valor de mercado, consistindo na contribuição direta feita por Smith para a maneira como “justo” é usado no “valor justo”. Ele não via justiça como justiça social, a justiça tinha aspectos comutativos e distributivos (Donleavy, 2019). Smith pensava uma sociedade de justiça comutativa, onde cada parte se abstém do que é do outro. Uma sociedade baseada na justiça distributiva com participação de todos nessa relação contratual de troca.

A noção de justiça distributiva de Smith difere da justiça distributiva ou social moderna. Para Smith, a justiça distributiva deveria ser de natureza voluntária, não coagida ou forçada por meio de mecanismos governamentais (Donleavy, 2019). Por fim, para Smith, o que era justo e valor justo, por consequência, era a não interferência na propriedade de outras pessoas (justiça comutativa) e no bom manejo da propriedade de alguém (justiça distributiva).

4. Contabilidade e sociedade: o imperativo da mediação e a justiça distributiva

Iudícibus et al. (2011) fazem uma série de inquirições sobre o envolvimento humano no sistema contábil e como sua missão primeira é dirimir conflitos e satisfazer necessidades, ao mesmo tempo que promove o reconhecimento das pessoas envolvidas no processo informacional contábil.

Segundo ensina Rawls (2008, p. 324), “os objetivos das partes, ou seja, supõe-se que elas nutrem um interesse por bens primários sociais, por coisas que se presume que os seres humanos querem, independentemente do que mais possam querer”.

Os seres humanos têm uma ideia de classe de bens que são normalmente desejados como partes de planos racionais de vida, planos esses que podem incluir os mais variados tipos de fins (Rawls, 2008).

Nesse sentido, há esforços contábeis para estabelecer um padrão de justiça inequívoco, dentro de um prospecto que influencie o sistema de mensuração dos fenômenos contábeis e possam ser prontamente compreensíveis e utilizados como marcadores justos nos processos de trocas de bens ou satisfação das necessidades de modo geral.

Os fatores de produção, que integram os vários fluxos de criação de riqueza e valor, demandam remuneração adequada à sua manutenção e reprodução. Os vários caminhos possíveis, concebidos a partir de diretrizes individuais voltadas para o estabelecimento de procedimentos de distribuição e alocação da riqueza gerada, suscitam ambientes propícios ao conflito, com repercussões danosas à convivência social harmoniosa (Ribeiro Filho et al., 2009, p. 2).

O processo de distribuição e alocação de riqueza nem sempre é harmoniosa e, geralmente, gera o conflito, porque o meio justo e valor de troca não conseguem se alinhar na negociação entre compradores e vendedores. Os interessados em trocar bens tentam satisfazer suas próprias necessidades em detrimento da necessidade alheia, não alcançando o meio termo, ou justo meio, ou valor justo, gerando o conflito distributivo.

O conflito distributivo é compreendido como um processo de confronto entre as pessoas, decorrente da tendência individual em direção à apropriação adicional de bens e serviços, em detrimento do outro. O papel da Contabilidade, portanto, é pensar e conceber um modelo de informação que auxilie na redução do conflito distributivo decorrente dos movimentos de apropriação de bens e serviços na sociedade (Ribeiro Filho et al., 2009).

O desenvolvimento de um conceito de justiça a ser utilizado com uma estrutura contábil epistemológica universal, aponta para a definição de uma taxonomia estruturada em um sistema hierárquico de termos, no sentido dado, por exemplo, à organização adotada nas ciências biológicas, de gênero, espécie, filo, classe, ordens etc. No caso da contabilidade, busca-se um padrão de justiça que seja baseado na teoria da justiça e, consequentemente, seja aplicado na fair value accounting.

Com a assinatura do Memorando de Compreensão (Memorandum of Understanding – MOU) entre o Financial Accounting Standards Board (FASB) e o International Accounting Standards Board (IASB) em 2002, o processo que modificou a ênfase da harmonização para convergência, assume uma posição mais forte (convergence efforts) no meio internacional, transformando, também, as International Accounting Standards (IAS – Normas Internacionais de Contabilidade) em International Financial Reporting Standards (IFRS – Normas Internacionais de Relatórios Financeiros) (Cabral, 2011).

Em 2006, o IASB emitiu um documento (discussion paper) intitulado “Fair Value Measurements” (‘mensuração a valor justo’), para ampliar a discussão sobre o “fair value” contido nas IFRS, fazendo-o convergir com aquele exposto no Statement of Financial Accounting Standard 157 (SFAS 157), emitido pelo FASB (2006), que é uma entidade estadunidense responsável por gerar o padrão United States - Generally Accepted Accounting Principles) (US-GAAP), ou seja, surge uma necessidade de convergência conceitual para explicar um mesmo título, o “fair value”, que poderia ter diferentes sentidos mesmo quando tratado na mesma língua inglesa pelo órgão normatizador internacional (IASB) e pelo dos Estados Unidos (FASB). Para o IASB, “fair value” significa um valor de consenso em uma transação sem favorecimento. Para o FASB, “fair value” está associado ao conceito de valor de saída ou de mercado (Whittington, 2008; Gelbcke et al., 2018).

No Brasil, desde 2007, constata-se a emissão de diversos pronunciamentos técnicos emitidos pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), em convergência com o IASB, cuja gênese da mensuração de alguns ativos e passivos estão centradas no conceito de valor justo (fair value). Migra-se, então, entre estruturas conceituais, com o objetivo de refletir para determinados ativos e passivos sua capacidade de geração de fluxos financeiros.

Hoje quem trata do Valor Justo Contábil é o CPC 46, referendado pelo Conselho Federal de Contabilidade na NBC TG 46 (CFC, 2017). A definição de valor justo se concentra em ativos e passivos porque eles são o objeto primário da mensuração contábil. Além disso, esta Norma deve ser aplicada aos instrumentos patrimoniais próprios da entidade mensurados ao valor justo (CFC, 2017).

A definição que se consolidou, inclusive no normativo, adveio do acordo de Norwalk firmado entre o IASB e FASB, com a busca da convergência entre essas duas instituições. O valor justo é uma aproximação ao valor de mercado, sendo definido “como o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração” (CFC, 2017).

Kam (1990, p. 146) define valor de mercado (valor justo) mencionando:

Talvez se considerarmos que o preço de mercado é aquele que é acordado entre o comprador e o vendedor marginal, é possível dizer que o preço representa justamente o valor de mercado. Contanto que o comprador tenha uma escolha (ele não precisa comprar), a transação está ao alcance da mão (arm´s length) e o preço pode ser aceito como uma expressão de referência.

Catty (2013, p. 15) replica a definição das SFAS 157: “o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação ordenada entre participantes do mercado na data de mensuração”. A definição vai ao encontro daquilo que Smith (2018, p. 55) ensinou:

O preço de mercado de cada mercadoria em particular é regulado pela proporção entre a quantidade que de fato chega ao mercado e a demanda daqueles que estão dispostos a pagar o preço natural do produto, ou o valor total da renda, trabalho e lucro, que deve ser pago para que ele chegue onde é esperado. Essas pessoas podem ser chamadas de demanda efetiva, pois esta pode ser suficiente para efetuar o transporte da mercadoria até o mercado.

A mensuração do valor justo destina-se a um ativo ou passivo em particular. Portanto, ao mensurar o valor justo, a entidade deve levar em consideração as características do ativo ou passivo ao precificar o ativo ou o passivo na data de mensuração. A mensuração presume que o ativo ou o passivo é trocado em uma transação não forçada entre participantes do mercado para a venda do ativo ou a transferência do passivo na data de mensuração nas condições atuais de mercado. Uma transação não forçada entre participantes do mercado recai na noção de justiça distributiva de Smith, que deveria ser de natureza voluntária, não coagida ou forçada por meio de mecanismos governamentais (Donleavy, 2019).

Com a inserção do valor justo, com uma noção de justiça distributiva, a Contabilidade cria um conjunto de métricas baseadas “em valores como a liberdade individual e de credos, democracia, igualdade de oportunidades e respeito à pessoa humana” (Ribeiro Filho et al., 2009, p. 2).

Desta feita, mediar o conflito distributivo implica no estabelecimento de marcadores, cuja principal característica seja a possibilidade de serem vistos e compreendidos por todos que atuam na movimentação de recursos escassos. O conjunto de métricas contábeis, produzidas no âmbito dos sistemas de informações, forma um mapa de marcadores, que, em última instância, promove o alinhamento entre as pessoas, com o intuito de reduzir conflitos. Nesse sentido, a contabilidade é, também, promotora da paz (Ribeiro Filho et al., 2009, p. 2).

A mediação torna-se imperativa, nesses termos, em razão da necessidade humana de perpertuar a espécie; de viver; de fazer o melhor; de brilhar. A expressão continuidade está presente na noção humana de vida eterna, de posteridade e de herança. Quanto mais se aproximar desses paradigmas, mais a contabilidade se humanizará, no sentido de colocar a sua contribuição para a construção da paz social (Ribeiro Filho et al., 2009).

Talvez, a Contabilidade não consiga resolver o paradigma contemporâneo de ajustar um conceito que melhor represente uma mensuração justa e que tente mediar o conflito distributivo, mas parametrizar seus atributos em valores éticos e sociais, nos pressupostos da verdade e equidade e a justiça na distribuição da riqueza, como premissa o valor justo, baseado na Teoria da Justiça, seja uma construção de uma Contabilidade humanizada e voltada para a construção da paz social.

5. Considerações Finais

A busca de uma definição aderente ao próprio percurso histórico da contabilidade e que sirva a evolução das sociedades e da própria civilização humana, com projeção para o futuro e aperfeiçoamento da humanidade, foi a intenção dos Professores Sérgio de Iudícibus, José Francisco Ribeiro Filho, Jorge Expedito de Gusmão Lopes e Marcleide Maria Macêdo Pederneiras.

A interligação entre a teoria crítica de Max Horkheimer, a teoria da comunicação de Jürgen Habermas e a luta por reconhecimento de Axel Honneth com a contabilidade, deu mais sustentação como uma ciência social que promove o bem-estar social e voltada para a construção da paz social.

A definição proposta expande o campo de aplicação da Contabilidade, iniciando com a mediação do conflito distributivo, mediante o reconhecimento, mensuração e evidenciação dos fenômenos que afetam o patrimônio das entidades, sob a perspectiva de uma atuação ética, pautada no interesse público e na dignidade do ser humano.

O estabelecimento de um padrão de justiça que influencie o sistema de mensuração dos fenômenos contábeis baseados em marcadores justos no processo de troca de bens e satisfaça as necessidades dos utilizadores de modo geral é uma das contribuições da Contabilidade, quando do surgimento do conflito distributivo.

O valor justo é um desses marcadores que serve de medição dos bens e dos direitos envolvidos nas relações humanas e comerciais, respondendo às necessidades dos vários participantes envolvidos nessa troca de bens sem favorecimento. Os fundamentos desse valor, na visão de Adam Smith, estão baseados numa justiça comutativa, onde cada parte se abstém do que é o outro e na justiça distributiva com participação de todos nessa relação contratual de troca.

A justiça distributiva deve ser voluntária, não coagida ou forçada por meio de mecanismos governamentais. O valor justo, em sua essência não interfere na propriedade de outras pessoas (justiça comutativa) e no bom manejo da propriedade de alguém (justiça distributiva).

Dessa forma, a mediação torna-se imperativa, nesses aspectos, pois o ser humano precisa perpetuar as espécies; viver; dar o seu melhor; brilhar. A continuidade reside nos conceitos humanos de imortalidade, descendência e herança. Quanto mais se aproxima desses paradigmas, mais humana se torna a contabilidade, no sentido de que contribui para a construção da paz na sociedade (Ribeiro Filho et al., 2009).

Declaração de conflito de intereses

Os autores declaram que não há conflito de intereses.

Agradecimentos

Agradecemos a Instituição de Ensino Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Contribuição de cada autor

Luiz Marcelo Cabral realizou o projeto da investigação, participou da análise teórica e da redação do artigo científico. Ernani Ott revisou a redação do texto e normas APA, conjuntamente com Clóvis Antônio Kronbauer. Rafael Rodrigues fez o projeto da investigação e redação do artigo científico.

Referências

Almeida, J. M de e Almeida, B. J. M de (2016). Teoria da contabilidade: construção e demarcação epistemológica. Escolar Editora.

Aristóteles (2008). Política. (4ª ed.). Martin Claret.

Aristóteles (2008). Ética a Nicômaco. Martin Claret.

Ball, R., e Brown, P. (1968). An empirical evaluation of accounting income numbers. Journal of accounting research, 159-178. https://doi.org/10.2307/2490232

Beaver, W. H. (1968). The information content of annual earnings announcements. Journal of accounting research, 67-92. https://doi.org/10.2307/2490070

Bittar, E. C. B. e Almeida, G. A. (2007). Curso de filosofia do direito (5ª ed.). Atlas.

Cabral, L. M. M. do C. (2011). Eficácia normativa contábil: uma análise de conteúdo nas notas explicativas das instituições financeiras listadas da BMF/BOVESPA. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil].

Catty, J. P. (2013). IFRS: guia de aplicação do valor justo. Bookman.

Donleavy, G. (2019). An inquiry into the origins of fair value. Accounting History, 24(2), 253-268. https://doi.org/10.1177/1032373218818847

Gelbcke, E. R., Santos, A., Iudícibus, S. e Martins, E. (2018). Manual da contabilidade societária: aplicável a todas as sociedades de acordo com as Normas Internacionais e do CPC (3ª ed.). Atlas.

Iudícibus, S. de (2012). Teoria da contabilidade: evolução e tendencias. Revista de Contabilidade do Mestrado em Ciências Contábeis da UERJ, 17(2), 1-13.

Iudícibus, S. de, Ribeiro Filho, J. F., Lopes, J. E. de G. e Pederneiras, M. M. M. (2011). Uma reflexão sobre a contabilidade: caminhando por trilhas da “teoria tradicional e teoria crítica”. Base -Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 8(4), 274-285. https://doi.org/10.4013/base.2011.84.01

Iudícibus, S. de e Martins, E. (2007). Uma investigação e uma proposição sobre o conceito e o uso do valor justo. Revista Contabilidade & Finança, Número especial 18, 9-18. https://doi.org/10.1590/S1519-70772007000300002

Kam, V. (1990). Accounting theory (2ª ed.). Wiley.

Lei 6.404 de 1976. Dispõe sobre as sociedades anônimas. 15 de dezembro de 1976. Diário Oficial da União - Seção ١ (Brasil). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6404consol.html

Lippman, E. J., & Wilson, P. A. (2007). The culpability of accounting in perpetuating the Holocaust. Accounting History12(3), 283-303. https://doi.org/10.1177/1032373207079028

Macedo JR, R. P. (2008). Curso de filosofia política: do nascimento da filosofia a Kant. Atlas.

Maffettone, S., Veca, S. (2005). A ideia de justiça de Platão a Rawls. Martins Fontes.

Rawls, J. (2008). Uma teoria da justiça (3ª ed.). Martins Fontes.

Conselho Federal de Contabilidade (2017). Mensuração do Valor Justo (Resolução NBC TG 46). https://static.cpc.aatb.com.br/Audiencias/8_CPC46_19102012_AP.pdf

Conselho Federal de Contabilidade (2019). Estrutura Conceitual (Resolução Estrutura Conceitual R2). https://cfc.org.br/tecnica/normas-brasileiras-de-contabilidade/normas-completas/

Financial Accounting Standards Board (2006). Fair Value Measurements. (Resolução SFAS 157). http://www.fasb.org

Ribeiro Filho, J. F., Lopes, J. e Pederneiras, M. (2009). Estudando teoria da contabilidade. Atlas.

Sánchez Serna, A. D., Arias Bello, M. L. (2012). Concepción de valor y precio desde Aristóteles a los clásicos: una reflexión a la luz de las premisas de valoración de las Normas Internacionales de Información Financiera, NIIF. Cuadernos de Contabilidad, 13(33), 433-462. http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0123-14722012000200006

Smith, A. (2018). A riqueza das nações: uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. Madras.

Whittington, G. (2008). Fair value and the IASB/FASB conceptual framework project: An alternative view. Abacus, 44(2), 139-68. https://doi.org/10.1111/j.1467-6281.2008.00255.x

© 2022 por los autores; licencia otorgada a la revista Escritos Contables y de Administración. Este artículo es de acceso abierto y distribuido bajo los términos y condiciones de una licencia Atribución-No Comercial 4.0 Internacional (CC BY-NC 4.0) de Creative Commons. Para ver una copia de esta licencia, visite https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/


1 Uma versão anterior deste artigo foi apresentada no 21° USP International Conference in Accounting, o ocorrido no período de 28 a 30 Julho na cidade de São Paulo – SP, Brasil.

2 Departamento de Ciências Sociais Aplicadas. Universidade Federal Da Paraíba. E-mail: luizmarcelocb@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6385-3241.

3 Departamento de Ciências Contábeis. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: ernaniott@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6712-8525.

4 Departamento de Ciências Contábeis. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: clovisk@unisinos.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1454-9243.

5 Departamento de Ciências Contábeis. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: rafaelrcontador@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3617-5585.